Campo Grande (MS) – Se em um passado não muito distante elas eram vistas como sexo frágil e lhes cabia apenas à criação dos filhos ou os serviços tidos como mais “leves”. Hoje, não é muito raro ver mulheres exercendo funções tidas como masculinas. Aqui, no Mato Grosso do Sul, na área de ciências agrárias, a cena pode ser vista cotidianamente na Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural).
Basta visitar alguns dos escritórios da instituição. Na região norte, mais precisamente na cidade de Cassilândia, há um exemplo claro dessa realidade, a técnica agropecuária e coordenadora municipal Eliane Souza. Já mais ao sul, no município Ivinhema, esse papel fica a cargo de Teonília Pereira da Silva. Profissional, com quase três décadas de carreira pública.
E se no mapa de Mato Grosso do Sul, essas duas estão em polos opostos. Na vida profissional, elas têm muitos pontos em comum do que imaginam. Ambas escolheram a mesma formação e fizeram da agricultura familiar à sua bandeira.
“A questão do machismo, eu enfrentei ainda no curso que fiz em Jales, São Paulo. Mas sempre soube lidar com isso, porque a mulher é capaz de fazer tudo o que deseja. Havia trabalhos que exigiam mais força e tal. Mas, nessas situações as meninas se juntavam e faziam de duas, se preciso fosse”, lembra Eliane.
“Fiz o curso no Cera [Centro de Educação Rural de Aquidauana]. Lá, um apoiava o outro e a gente se igualava. Era tudo peão. Não sei se por ser um curso puxado, mas a gente se via como família. Talvez porque o estudo era meio estilo internato. O desafio veio após a formação mesmo”, lembra a outra técnica agropecuária.
Resiliência profissional
E para os obstáculos a resposta foi à persistência. “Na turma, de 120 alunos apenas 10 eram mulheres, isso na década de 80. Dessas, só cinco se formaram. Mas, só eu fiquei na área. Das outras quatro, uma fez ciências contábeis e trabalha na UFMS, tem uma que está na área da educação, outra que é militar na PRF e mais uma que foi para São Paulo fazer outras coisas”, relata Teonília.
“É um curso de força, força de vontade. Tinha professor que dizia íamos enfrentar dificuldade no mercado de trabalho. A única menina que se formou comigo foi fazer o que meus colegas chamavam de ‘coisinha de mulher’, foi ser vendedora. Desistiu mais por falta de oportunidade”, expõe Eliane.
Razão que ela acredita desmotivar muitas meninas. “Nessa área, as instituições públicas oferecem mais chances que as privadas. Aqui, em Cassilândia, muitas das meninas que fizeram estágio sentiram dificuldade. E nas fazendas, ainda há aquele receio de contratar mulher por conta do serviço”.
Contudo, elas garantem que os obstáculos não às impediram de acreditar. Mesmo porque as duas compartilham mais um ponto em comum: a vontade de lidar com a terra. Desejo esse manifestado ainda na infância.
Eliane morou até os 9 anos de idade na fazenda dos avós maternos. “Venho de família rural e, como brincadeira de criança, eu ajudava a minha avó a cuidar dos animais e da horta”.
De maneira parecida foi com Teonília. “Minha família era do meio rural, onde cultivava lavoura de subsistência e pequenas criações, em propriedade de terceiros, na região de Batayporã. Na infância, cheguei a catar amendoim com a família e isso era uma diversão. Depois cresci vendo familiares trabalhando na educação e quis seguir um caminho oposto”.
E se já não houvesse semelhanças suficientes, as duas compartilham a forma de não deixar germinar a semente do preconceito no meio rural. Solução encontrada na tolerância e sutileza feminina, elementos que fazem a diferença até hoje.
“A resistência por parte de produtores foi mais na minha fase de recém-formada. Aqui, em Ivinhema, eu conheço todo mundo. Atendo até os filhos dos agricultores, uma geração que eu vi crescer e já está constituindo família. Entretanto, sei que não é assim para todas”, diz a técnica.
A exemplo de Eliane, que por duas vezes assumiu o cargo de coordenadora municipal, primeiro em Alcinópolis e depois em Cassilândia, onde está até hoje. “Talvez por eu ser mulher e negra já vi muito em pessoas aquela surpresa no rosto. Houve situações em que eu estava acompanhada, a pessoa chegou e achou que o coordenador era meu colega, só porque ele era homem. Foram as situações, mas não sou eu. Tanto que sempre soube me sair bem”.
E tanto bom senso e jogo de cintura renderam benefícios a toda uma cidade. A todo vapor, quem vê o escritório da Agraer de Cassilândia não imagina a causa de sua existência.
“Passei no concurso para Alcinópolis e em seis meses fui convidada a assumir a coordenação de lá. Depois, o prefeito de Cassilândia soube por terceiros do meu trabalho e como queria abrir uma Agraer aqui, a solicitação feita por ele era que eu viesse. A direção da Agraer avaliou, eu vim e de quebra fiquei perto da minha família que é de Paranaíba”, relembra.
Sem fragilidade
Seja no norte ou no sul do Estado, uma coisa é certa: Eliane e Teonília também representam a força da agricultura familiar e a fibra daquelas que dentro ou fora do trabalho buscam dar o seu melhor.
Casada e com os filhos encaminhados, a técnica Teonília se diz realizada. “Conheci meu marido dentro do curso e com ele tive dois filhos. Um está nos Estados Unidos fazendo doutorado em agronomia. O caçula cursa engenharia mecânica, na UCDB. Digo que alguém tem que consertar as máquinas para nós”, brinca.
“Tenho um filho adolescente, de 16 anos, e trabalho duro para criá-lo sozinha. Dentro da Agraer tive em meus superiores a confiança para eu fazer as coisas do meu jeito. Aprendi que não preciso andar só em linha reta, posso seguir, voltar, virar. São ensinamentos que fazem a pessoa que sou hoje”, afirma Eliane.
Vivendo em regiões opostas do mapa e ao mesmo tempo com tanta garra em comum, talvez seja nos planos futuros que as duas mais se distinguem.
“Vi os filhos dos produtores crescerem e vários até atendo. Mas atender os filhos dos filhos, a terceira geração, já é demais para minha cabeça. Daqui uns anos, devo aposentar e esperar os netos”, diz descontraidamente Teonília ao lembrar-se dos anos dedicados a Ivinhema. “A cidade já foi capital da goiaba e café. Isso aqui é um paraíso. É bom saber que pelo meu trabalho eu posso contribuir com a realização dos sonhos de pessoas ligadas ao campo. A extensão rural é como uma família. Você tem que amar para ver os resultados”.
“Quero trabalhar com agricultoras de Cassilândia. Preparar um projeto ou atividade a esse grupo. Ainda sinto que as mulheres do campo não são tão valorizadas. Quero dar minha contribuição para reverter isso”, planeja a coordenadora municipal Eliane.
Com trajetórias de vidas tão próximas e escritórios distantes, as técnicas agropecuárias mostram gratidão à carreira por todos os frutos colhidos até hoje. “Foi uma surpresa quando o meu mais velho decidiu ser engenheiro agrônomo. Ele saiu de casa dizendo que ia prestar vestibular para Direito. Quando o resultado saiu que ficamos sabendo e, hoje, quando liga ele sempre diz que fez a escolha certa. O caçula também é muito esforçado e creio que parte se deve ao exemplo em casa”.
“Tenho um sobrinho que quer ser agrônomo para entrar na Agraer. Eu digo para ter calma, porque primeiro tem que entrar na faculdade. E uma agricultora me falou que a filha quer ser como eu quando crescer. Interessante que a menina é negra como eu. São essas coisas que nos gratificam dentro da profissão”, finaliza Eliane.
Aline Lira – Agraer